A mão esquerda das trevas, de Ursula K. Le Guin
Escrito em 1969, por Ursula K. Le Guin que com ele ganhou o Nebula e o Hugo, faz parte do ciclo Hainish mas lê-se perfeitamente a solo.
Andava com vontade de pôr as mãos neste livro há muito mas há livros que nos fogem. Começo já por vos dizer que gostei muito mas que preciso relê-lo. Há livros assim, que precisam ser lidos e relidos. Posso dizer-vos que assim que o teminei voltei a ler os primeiros capítulos.
Não sei do que estava à espera (sou leitora de fantasia mas não sou grande leitora de Ficção ciêntifica - estou a mudar isso) mas não era disto. E ainda bem.
Esta é a história de Genly Ai, nativo do planeta terra, que vai em missão (em nome do Ecuménio - o orgão governativo interplanetário) para Gethen (ou Inverno), um planeta que, tal como o nome indica, vive numa era glaciar.
A missão? Convencer as nações daquele planete a juntarem-se ao ecuménio e assim estabelecerem, com os restantes 84 planetas, relações comerciais, de partilha de tecnologia e de comunicação. Não há invasões nem as haverá: um único homem é enviado como prova disso. Tempo é coisa que não falta ao Ecuménio (afinal o planeta mais próximo está a 17 anos-luz de Inverno).
Assim, temos Genly Ai a tentar convencer Karhide (principal região de Gethen) a juntar-se à coligação interplanetária de forma a que Orgoreyn e as restantes regiões do planeta lhe sigam o exemplo. Desde o início que o principal apoiante de Genly é Estraven que não só acredita nele como apoia a sua causa junto do rei. Mas na véspera da audiência com rei de Karhide, Estraven retira-lhe o apoio...
Gethen, para além de ser um planeta inóspito e gelado, tem a peculiariedade de que os seus habitantes são andróginos e apenas uma vez por mês entram em Kemmer, um período de sexualidade activa onde podem assumir o género feminino ou masculino. A vivência destes períodos de sexualidade activa é de tal forma aberta que não há crime sexual em Inverno. E o incesto é permitido.
Uma pausa para reflectir um bocadinho nisto. Um ser que pode ser mãe de um filho ( quando engravidam assumem 9 meses de género feminino) e pai de outro.
Aquilo que mais chocou Genly quando chegou a este planeta foi precisamente esta questão. Como se relacionar com outro ser que não é homem nem mulher mas ambos simultaneamente?
Quais são as consequências sociais desta androginia?
Ursula K Le Guin pensou esta sociedade e estes seres. E nós, leitores? Como os conseguimos imaginar? Em primeiro lugar é simples, nós temos uma palavra para isto mas na prática é muito mais difícil: só temos os pronomes ELE e ELA para usar e nenhum deles é neutro por isso, queiramos ou não, usamos o pronome pessoal MASCULINO para cada um dos habitante de Gethen. Para além disto (patente em cada página deste livro) temos a associação de características masculinas e femininas extremamente estereotipadas - várias vezes temos Genly a dizer que viu características femininas em Estraven ou no Rei - sejam doçura ou vontade de mexericar, por exemplo.
Uma das partes menos conseguidas do livro que, ainda assim, é uma excelente reflexão sobre igualdade e identidade de género (não consegui não fazer alguns paralelismos com o livro Orlando, da Virginia Woolf), é que todas as relações em Gethen (a não ser que eu tenha perdido alguma coisa, o que é possível) são heterossexuais - se em Kemmer, duas pessoas sentem atracção, uma manifesta-se como mulher, outra como homem. Isto torna-se bastante mais relevante na parte final do livro.
A escritora tenta imaginar uma sociedade sem tensão sexual, nem que o sexo ou o género, interfira nas decisões e na sociedade e isso é extremamente interessante.
Os jogos políticos também são uma constante ao longo do livro mas não se tornam uma questão tão proeminente como tudo o resto. Como todas as dualidade que são expostas ao longo destas páginas: mulher/homem, Luz/Trevas, confiança/traição, amizade/solidão, vida/morte.
Até aqui falei-vos, muito superficialmente, das questões que saltam à vista, que estão na capa e contracapa e em qualquer sítio onde se fale deste livro. Falta uma. Falta aquela que é, para mim, o verdadeiro tema deste livro, aquele que sobra depois de retiradas todas as camadas superficiais, as políticas, de género, culturais ou sociais: amizade. Por que a jornada de Genly Ai não pode ser dissociada da jornada de Estraven.