Ecologia, de Joana Bértholo
Diz Ursula K. Le Guin (introdução, A mão esquerda das trevas, ed Relógio D'agua) que "A ficção ciêntifica não prediz, descreve." e que "O que os autores de ficção tentam fazer é dizer-nos como são e como nós somos - o que está a acontecer - como está o tempo hoje, agora, neste preciso momento, a chuva, o sol, olhem! Não nos dizem o que veremos e ouviremos. Podem apenas dizer-nos o que eles próprios viram e ouviram, na sua passagem pelo mundo, um terço da qual foi despendida a dormir e a sonhar e o outro terço a dizer mentiras" .
Uma distopia é sempre muito mais sobre a actualidade do que sobre o futuro. Aliás, corrigo, qualquer distopia é sempre sobre o presente, sobre as escolhas que fazemos hoje, sobre a forma como o escritor (e de certa forma o leitor) vê o mundo. Eu, enquanto leitora de fantasia considero que estes géneros - fantasia, ficção ciêntifica, distopias - são aqueles que mais comunicam e envolvem os leitores - a sua interpretação, a forma como o leitor escolhe ler estes livros é fundamental.
Joana Bértholo, neste ecologia, apresenta-nos uma ideia (brilhante) em 3 fases: um mundo onde tudo se paga, tudo se privativa, tudo se paga... até as palavras. Sim, alguém teve a ideia de privatizar as palavras. E alguém conseguiu pôr essa ideia em prática. E uma ideia mudou o mundo. revolucionou tudo. Abriu portas, fechou portas. Ao longo desta história acompanhamos vários personagens neste percurso de privatização de tudo. Lúcia e Pablo, um casal como tantos que conhecemos, um casal a tentar manter um casamento e um filha, a Candela. Carolina e Tápio. Jeff, Darla, a Mulher-Eco, Nelson, Pedro. Cada um deles, da sua forma, a tentar viver e adaptar-se às mudanças no mundo como todos nós fazemos.
Nós temos o privilégio de viver tempos interessantes. Somos das gerações que vimos o mundo mudar. Somos as gerações que, para o bem e para o mal, mudaram o mundo. A evolução das espécies baseia-se na sobrevivência do mais apto. Hoje isso é (quase) tão verdade como no passado distante... o que mudou foi a definição de mais apto.
Sim, eu sei que estou a divagar e que pouco ou nada vos contei acerca da história mas vou deixar as coisas assim, para não estragar a leitura a quem a quiser ler.
Apenas mais duas notas.
A premissa deste livro, a ideia base, a história, é genial. A escrita é fabulosa, acho mesmo que a Joana Bértholo escreve muito bem. Mas acho que por vezes escreveu demais. O ritmo deste livro não é o que acho mais adequado para as distopias. Este tipo de livro ganha mais com uma escrita mais escorreita, ganha mais sendo de leitura compulsiva, rápida e a deixar as conclusões para o leitor. No meu ponto de vista, há demasiada reflexão - que gostava de ter sido eu a fazer. Não precisava ser conduzida pela mão da escritora. Menos 100 páginas e este seria o livro que ia, durante anos, aconselhar a toda a gente. Assim, sei que a maioria das pessoas que conheço não terão pachorra para o ler. Às vezes "menos é mais".
Uma das coisas que adorei neste livro foi a forma como o livro interage connosco. Encontrar os segredos escondidos nos QR codes espalhados nestas páginas foi bastante interessante (também quebrou um pouco o ritmo mas valeu a pena).