Não se pode morar nos olhos de um gato, de Ana Margarida de Carvalho
Depois de "Que Importa a Fúria do Mar" Ana Margarida de Carvalho regressou com este "Não se pode morar nos olhos de um gato" e a primeira coisa que tenho que referir é que, mais uma vez, o título deste livro é fabuloso (e é inspirado num poema de Alexandre O'Neill).
No livro, tal como no poema, este título esconde uma crueza que nos atinge às primeiras palavras. Logo no primeiro capítulo é a santa de madeira do navio que nos fala, de enxurrada, num monólogo carregado de dor e raiva.
Os personagens vão-nos sendo apresentados aos poucos, por camadas. Primeiro estereótipos (o capataz, o passageiro, a fidalga, o criado) vão-se tornando gente à medida que nos vão contando a sua história. E cada um deles tem uma história, um segredo por contar, um pecado para expurgar.
O grupo que sobrevive ao naufrágio e se junta naquela praia está sujeito a todos os preconceitos que, na altura, ontem e hoje, moldam a sociedade. Numa situação extrema, como a que este grupo está sujeita, os preconceitos de raça, género ou religião tornam-se incontornáveis e é a absoluta necessidade que leva a que cada um dê o melhor de si (que nem sempre é suficiente ou aceitável) para que a sobrevivência seja uma realidade. Aliás, nem sequer é o melhor que emerge, mas o necessário, quando existe capacidade para tal. Ou correm o risco de se consumirem no processo.
A escrita irrepreensível de Ana Margarida de Carvalho e o tom que imprime a este livro deixaram-me interessada desde a primeira página mas este livro vive dos personagens.
A construção dos personagens é impressionante. Conhecemos cada um deles através do seu passado, de alguns das muitas histórias que o compoem. Muitas vezes os livros apresentam-nos apenas o futuro, como se a qualquer momento pudéssemos esquecer quem somos, quem fomos e com que barro nos fizemos. Aqui, neste livro, não há disso. Há crueza, crueldade, preconceito, empatia, repulsa, coragem e cobardia, paixão, amor, amizade. Há toda a gama de emoções que atravessaram as épocas e através delas ficamos a conhecer melhor um conjunto de personagens que, ao serem obrigados a enfrentar os seus próprios fantasmas, se conhecem e se dão a conhecer.
Não esperem uma história de redenção nem uma história parecida à do Robinson Crusoe. Esperem uma história crua e impiedosa, cheia de histórias dentro, histórias feias e duras, histórias de desesperança. Não esperem redenção, esperem realidade.