Linguagem e memória
Vivemos uma época estranha. Nunca tivemos tanto acesso a informação mas nunca foi tão difícil destrinçar o que nos chega enviesado, truncado, alterado.
Quem me conhece pessoalmente já me deve ter ouvido falar da minha embirração com os romances que retratam o holocausto de uma forma relativamente benigna, que contam histórias de amor em campos de concentração e que conseguem fazer daqueles dias, dias de esperança. Por mais que me digam que é importante conseguir ver alguma luz naquele período, assusta-me que se esteja a perder o foco, a branquear algo que não pode, a bem do futuro, ser branqueado, menosprezado, tornado mais leve. A literatura é, também, uma forma de preservar a memória. É talvez a forma mais fácil de a preservar. Infelizmente também é a forma mais fácil de a perverter. Às páginas tantas aquela ficção, criada para entreter e não machucar muito, torna-se verdade universal e em vez de aprender nos livros de história achamos que o que aprendemos nas páginas daquele romance é suficiente para nos dar uma fotografia daquele tempo.
A verdade é que quando um livro é escrito, é a realidade do escritor, do tempo do escritor, da percepção do escritor que está vertida naquelas linhas - exactamente como este texto retrata a minha visão actual (pode mudar, senhores, que cá eu não rejeito mudar de opinião se achar que estou errada) sobre este tema. E esta visão está enviesada pelas minhas crenças, pelos meus preconceitos, pelo que li, estudei e aprendi sobre ele.
Da mesma forma que um romance de época reflecte a forma como a actualidade vê aquela época. Consoante a pesquisa feita reflecte o conhecimento dos historiadores, o conhecimento académico, a percepção geral - daí que me preocupe a forma como olhamos, por exemplo, para o holocausto. A forma de escrita, a linguagem utilizada, tudo isso é importante.
Claro que a língua que conhecemos hoje não é a língua de Camões. Caramba, quando eu pego nas cartas da minha avó do início do século XX (o homem, com quem ela gostaria de casar e com quem os pais não a deixaram casar, passou-as para um caderno e ofereceu-lho - a imagem que ilustra este texto é desse caderno) mal as consigo decifrar. Claro que tornar perceptíveis para nós esses textos - da forma mais fiel ao texto e à forma - é de extrema importância. De que forma, senão através da tradução, os livros passados ou escritos noutra língua nos seriam acessíveis?
Mas deturpar, de forma consciente, a linguagem, suavizando-a, transformando o texto com o viés do que consideramos aceitável é tão perverso em termos de memória colectiva que nem consigo perceber como pode ser considerado uma boa ideia para alguém.
Hei-de voltar, imagino que inúmeras vezes, a este tema.