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Ler por aí

Ler por aí

26
Nov24

Os Rostos, de Tove Ditlevsen

Patrícia

Os rostos.jpg

Um tratado sobre a loucura, as expectativas, a culpa e essa grande meretriz que é a nossa mente.

Ao longos destas páginas de uma escrita absolutamente cativante, acompanhamos a descida ao inferno de Lise, uma escritora de livros infantis. Rapidamente nos apercebemos que vemos o mundo através do rosto e da mente de Lise, pelo que não se torna fácil destrinçar a ilusão da realidade. Mas…neste caso a realidade não me interessa. Não me interessa medir o nível de loucura daquela mulher, nem é este um livro onde o complexo de Cassandra é importante. O meu fascínio desde as primeiras páginas foi a percepção que estava a navegar na loucura, a ver o mundo através de outra realidade. Por vários motivos, este olhar, por dentro, para uma realidade enviesada interessa-me muito. Sempre dei por mim a perguntar-se se os outros veriam as coisas da mesma forma que eu (e não o faço de uma forma filosófica ou metafórica, mas literal) e, como lido com demências várias, tenho que imaginar o mundo dos outros, que lhes é tão real como o meu é para mim.

É simplista descartar as consequências da loucura, o medo provocado por uma ilusão é tão forte (ou ainda será mais) como o que é suportado pela realidade. As expectativas irreais que apenas existiam na mente de Lise tiveram consequências tão fortes como quando alguém nos diz de forma explícita o que espera de nós. Não, na verdade as expectativas (e a culpa, essa sacana) que criamos em nós mesmos são mais poderosas que quaisquer outras.

Foi uma surpresa e uma excelente leitura, que me vai acompanhar muito tempo.

20
Nov24

Não é possível que já seja Novembro

Patrícia

O tempo, relativo ou não, passa demasiado depressa. Não, ainda não venho falar de Natal nem fazer-vos sugestões de livros-presente (claro que um livro é sempre o presente certo), isso fica para o mês de Dezembro. Não tenho andado a ler muito e não prevejo vir a fazê-lo no próximo mês. Desde o A Guardiã li apenas dois livros. O primeiro foi o Os Crimes do verão de 1985 de que não fiquei fã - demasiadas incongruências para mim, sou uma pessoa que sofre dos nervos quando deixo de acreditar no que estou a ler. Esta minha característica é tão amada quanto questionada no meu grupo de leitores. Amada porque é uma risota completa quando eu começo “ora vamos lá a ver, então cabe na cabeça de alguém que esta merda pudesse acontecer?” ou “a sério? Querem mesmo convencer-me que alguém espirra sempre que levanta o dedo mindinho da mão direita e dá três passos em pé coxinho?”. Questionada, porque me perguntam como raio eu sou tão picuinhas com determinados livros mas falo de dragões e fantasia como se acreditasse piamente que aquilo é verdade. A resposta é simples, a questão da verosimilhança é, para mim enquanto leitora, bastante importante. Quando eu estou a ler um livro tenho que acreditar no que está ali.

Enquanto eu estou a ler Fantasia ou Ficção cientifica, acredito que aquele mundo, aquelas regras, são reais. E a verdade é que os leitores de fantasia e FC são, por definição, uns chatos do catano com esta questão da verosimilhança dada uma determinada premissa.  No worldbuilding de um livro de fantasia é estabelecida a premissa, a definição das regras é feita e no final aquilo tem que bater certo, de acordo com aquelas regras. Para inventar regras a meio é preciso ter muito cuidado (o Sanderson é exímio nisto porque quando relemos os livros percebemos o quão bem definidas estão as regras mesmo que só mais tarde saibamos que existem). Quando estou a ler ficção passada na nossa realidade, tudo o que ali está tem que ser compatível com aquilo que conheço, uma espécie de “se non è vero, è ben trovato”. Num romance histórico passado no século XIX não pode haver telemóveis. Acho que assim toda a gente percebe o que quero dizer. E sim, eu sei que que há imensa coisa (especialmente mentalidades/higiene) nos romances de ficção histórica que não correspondem à época e confesso que isso não me agrada mas admito algumas liberdades a bem da estória. Só que há coisas que não são verosímeis. Às vezes basta uma grande, outras vezes são as várias pequenas que me enervam. No caso deste policial começou por me enervar a atribuição de uma reportagem de um caso de pedofilia a um dos personagens, reportagem essa extramente conhecida, aquilo pareceu-me preguiça. Depois foi a inclusão de todos os casos (e mega processos) possíveis e imaginários (ao contrário do que possa parecer, uma bela dose de realidade não ajuda a fazer de um policial uma leitura interessante). E não esquecer as cenas do “a sério?” começando com uma determinada cena num beco e terminando na personagem do padre (claramente o autor conhece pouco da vida numa pequena paróquia em particular e da igreja católica em geral – isso ou o padre ganhou o euromilhões e cortaram essa parte do livro). Enfim, o livro terá as suas qualidades porque tem sido extremamente bem recebido mas não me agradou, certamente pela minha picuinhice habitual.

O outro livro que li foi o A impostora, da R. F Kuang e também não achei um livro de entrar para os tops. Não criei anticorpos  a este livro mas, apesar do tema principal – o mercado editorial – ser um bombom para qualquer leitor, achei-o chato a um determinado ponto, cheio de clichés e com um final típico da escritora – cheio de violência despropositada. Pareceu-me um livro escrito pelo poder da raiva e isso até pode ser surpreendente mas não será memorável.

Já a leitura em andamento – Os Rostos, de Tove Ditlevsen – tem tudo para ser uma leitura fabulosa mas sobre isso falaremos num próximo post.

04
Nov24

A Guardiã, de Yael van der Wouden

Patrícia

a guardiã.webp

Países Baixos, 1961. Isabel é a fiel guardiã da casa da família. Bem, talvez não apenas da casa da família, mas da própria família. Afinal Louis, o irmão mais velho, foi o primeiro a sair de casa e continua a coleccionar mulheres e a relação da família com Hendrik é, no mínimo, conturbada. Ficou para a mulher da família (que surpresa) a obrigação de tratar da mãe e da casa que um dia ficará para Louis, o primogénito. Já a Isabel, após cumprir a missão de cuidar da mãe até ao fim, é-lhe relembrado que, como mulher, não deve pesar na vida do irmão mais velho, deve “desamparar a loja” arranjando um marido.

 No início do livro, os três irmãos são-nos apresentados de uma forma muito clara: Louis, mimado, instável e mulherengo; Hendrik, bem resolvido e estável; Isabel, solitária, deprimida, obsessiva.

Quando Eva, a nova namorada de Louis, vem passar uma temporada à casa da família, a organizada e solitária vida de Isabel desmorona-se. Primeiro desaparece uma colher. Não, primeiro aparece um caco de cerâmica que parece mesmo, mesmo, um pedaço de um prato do serviço bom da mãe de Isabel, aquele que tem lebres desenhadas. Só que não falta nenhum prato nem a Isabel se lembra de algum se ter partido. Depois desaparece uma colher. Depois desaparece outra coisa e outra ainda. Isabel dá conta de cada coisa que desaparece e a sua loucura parece crescer em espiral. Terá sido Neelke, a empregada? Ou será Eva, a estranha namorado do irmão, a responsável pelos desaparecimentos?

Isabel foi uma personagem que me fascinou desde o início do livro. As suas maldadezinhas eram, quanto muito, dignas de pena, especialmente porque o seu sofrimento era óbvio. Às tantas achei que o único caminho para ela era o da loucura. Mas enganei-me, claro e ainda bem. Teria sido demasiado óbvio. Talvez mais verosímil, mas menos interessante.

A tensão sexual é patente ao longo de todo o livro. E as cenas mais eróticas talvez possam incomodar o leitor mais sensível (digamos que não era um livro que desse a ler à minha mãe).

Quem me conhece sabe que sou muito chatinha quando deixo de acreditar que determinados acontecimentos podiam ser ou não verdadeiros. Ao longo deste livro fiz várias comparações com Portugal, geralmente pensando que “isto não se poderia ter passado ”, mas a verdade é que não sei o suficiente dos Países Baixos em 1961 para saber se as coisas poderiam ter sido bem assim.  Falo, claro, de Hendrik, da forma como foi apoiado pelo tio e da forma soft de discriminação que passou.

Mas aquilo que vou recordar deste livro é o que senti quando percebi efectivamente o que se estava a passar, qual era o acontecimento que tinha levado àquela situação. Esse momento, aquele momento em que percebemos que o que estamos a ler é outra coisa, e tudo o que lemos depois desse momento, é a razão pela qual lemos livros atrás de livros.

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