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Ler por aí

Ler por aí

28
Mai23

O tempo dos outros

Patrícia

O tempo pergunta ao tempo quanto tempo o tempo tem.

O tempo responde ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem.

Vamos ser sinceros: Tal como a galinha da vizinha é sempre melhor, a erva é sempre mais verde do outro lado, também o nosso tempo é muito mais importante que o tempo dos outros.

Este texto surgiu na sala de espera de um consultório médico. Tinha marcado uma consulta para o primeiro horário disponível, uns minutos antes da hora estava a tocar à campainha da clínica e depois esperei cerca de 1h10 minutos pelo médico. 1h10 minutos na primeira consulta do dia. Mas é um médico, preciso da consulta, cerro os dentes e aguento. Perco 1h10 da minha vida porque alguém não tem respeito suficiente para acreditar que o meu tempo vale tanto quanto o dele.

Há uns tempos aceitei a marcação de uma reunião zoom e meia hora depois saí da reunião sem que as pessoas do outro lado tivessem sequer aparecido. Certamente o seu tempo é bastante mais valioso que o meu.

Nós leitores carregamos livros para todo o lado para aproveitar este tempo, que nos é oferecido por quem não nos respeita o suficiente para cumprir os horários que connosco acordaram mas ainda temos que ouvir "eu não tenho tempo para ler". Certamente que o tempo destas pessoas é bastante mais valioso que o nosso e ocupado em actividades em que vale a pena gastar o tempo, enquanto nós, que temos tempo para dar e vender, até podemos gastar tempo com os livros.

E os amigos? Aqueles que sistematicamente chegam atrasados ao café? Um sorriso e um "desculpa, não consegui chegar antes" porque o seu tempo é muito mais importante que o nosso, resta-nos esperar que façam o sacrifício de gastar um pouco do seu precioso tempo connosco.

(nem vou falar do que tanta gente passa em casa, com o seu tempo a ser totalmente desvalorizado pelo outro)

Espectáculos vários e concertos em particular que começam sistematicamente tarde e que demonstram ter mais respeito por quem chega atrasado do que por quem os respeita o suficiente para chegar a horas é também um banal por cá.

A minha mãe, professora primária, ensinou-me sempre que se chegasse em cima da hora, estava atrasada. Se a aula começava às 08h, a essa hora deveríamos estar sentados, preparados para começar a aula e não a entrar na escola/sala de aula. Trouxe esse hábito para a vida. Tenho o dia estragado se me atraso para o trabalho. 10 minutos é o suficiente para me deixar à beira de um ataque de nervos. Claro que me atraso, de vez em quando, como toda a gente mas tento sempre avisar, pedir desculpa e não agir como se o meu tempo fosse mais importante que o de todos os outros.

25
Mai23

A história de Roma, de Joana Bértholo

Patrícia

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Desde que li o Ecologia, o nome da Joana Bértholo entrou de forma directa para a lista dos "escritores que quero ler". Fui lendo e ouvindo muitas opiniões, a maioria extremamente positiva, que referiam ser uma história sobre "o que podia ter sido". 

Após ter acabado de ler este livro, de que definitivamente gostei muito, precisei de algum tempo para "encaixar o que li" e conseguir verbalizar a minha opinião.

(se não leram o livro aconselho a que parem de ler aqui, pode haver alguns spoilers)

Sim, eu percebo porque é tantas vezes dito "é uma história sobre o que podia ser dito". Prefiro não a entender assim. E já o explico. 

Às páginas tantas percebemos que a nossa narradora, Joana, é "pouco confiável". Na verdade é tão pouco confiável quando qualquer pessoa na vida real. Ela conta-nos a forma como viveu, o que sente, a sua interpretação dos acontecimentos, a sua memória de certas conversas, a sua versão de alguns momentos. E também nos omite factos, seja de forma consciente ou inconsciente. Para mim, neste livro, isso faz dela uma pessoa bem mais real que muitas personagens uni-dimensionais que por hábito vamos encontrando nos livros e que nos convencemos que conhecemos. Independentemente de gostarmos ou não de Joana, de sentirmos ou não empatia com ela, com as suas escolhas e com as suas decisões, conhecemo-las e compreendemo-las ao longo destas páginas e das suas viagens. Apesar de, tal como Joana fazia com os amigos, só conhecermos o que ela nos quer contar e de, por vezes, duvidarmos da veracidade daquelas memórias/declarações. Literariamente, esta forma de contar uma história é bastante interessante e é aqui que para mim encaixa a frase "é uma história do que podia ter sido"...

A maternidade, o ser ou não "mãe", é um assunto central na vida de qualquer mulher, da sociedade. A pressão que existe e que valida/critica as escolhas que supostamente as mulheres têm o direito de fazer, é algo que qualquer mulher conhece e que tão bem está retratado aqui. Joana Bértholo não tem complacências e ao longo destas páginas vai-nos contando aquilo que já tão bem sabemos, que tantas de nós vivemos em cada dia. Este, que é um assunto maior, é tantas vezes menorizado na literatura e quase sempre apresentado da forma que reflecte a posição da sociedade: as mulheres são acima de tudo reprodutoras, "podem escolher mas..." e é este "mas" que contém toda a culpa do mundo.

Este livro é uma história do que podia ter sido, reformulo, este livro é uma história de quem podia ter sido. Confesso que esta parte me fez, à primeira leitura, ter uma reacção de "a sério? depois disto tudo, é esta a opção?" mas tenho que ser justa e perceber que Joana Bértholo faz aqui aquilo que a literatura faz de melhor: fazer-nos pensar, não ser meiga nem nos levar pela mão. A literatura não serve apenas para nos contar histórias bonitas, fáceis ou que digam exactamente aquilo que pensamos. Serve também para nos incomodar, espicaçar. 

Ecologia ainda é o meu livro preferido da Joana Bértholo mas gostei muito deste A história de Roma, que é o tipo de livro que fica comigo muito tempo, que vou descobrindo mesmo quando já o li há muito, de que me apetece falar e ir redescobrindo a cada conversa.

 

24
Mai23

Um cão no meio do caminho, de Isabela Figueiredo

Patrícia

 

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Acho que este foi dos livros mais consensuais dos últimos tempos. O problema é que eu sou, geralmente, a ovelha ronhosa e como tal fujo dos livros de que toda a gente gosta. Um outro problema é que todos me diziam ser um livro sobre solidão. Pior, um livro sobre a solidão nas cidades. E, para mim, a solidão tem duas facetas: ou é maravilhosa ou deprimente. As coisas maravilhosas não dão grande literatura e a "solidão deprimente" é coisa que me aflige muito e eu tenho medo de ver as coisas que me afligem muito transformadas em literatura bonita. Eu sei, sou estranha. Para além disto comecei três vezes este livro e não fiquei fascinada - em minha defesa devo admitir que essas três tentativas foram a altas horas de noites de insónia.

Mas quando percebi que o livro não é sobre solidão (eu compreendo porque o dizem) mas sim sobre o contrário da solidão e quando conheci o personagem fascinante que nos conta esta história fiquei completa e absolutamente agarrada. E li-o de duas penadas. 

Não considero que este seja um livro sobre solidão, apesar da "solidão", enquanto modo de ser, estar presente. Para mim esta história é sobre escolhas. Sobre coragem. Sobre a coragem de fazer escolhas que não são imediata ou facilmente entendidas. É também um livro sobre preconceito. A escritora mostra-nos os nossos preconceitos de uma forma muito pouco subtil mas bastante eficaz. 

 A coragem de viver de acordo com aquilo em que se acredita, a coragem de ser quem devemos e queremos ser deixou-me encantada. A força de nos libertarmos do condicionalismo da sociedade, de não permitirmos que seja as crenças dos outros a moldar-nos é aquilo que eu li nas páginas deste livro. Esta força, esta coragem não vem sem consequências. O caminho para sermos quem somos não é sempre fácil e sem caixas, quer dizer, sem pedras no caminho. E nem sempre é possível mesmo com toda a coragem do mundo. 

Isabela Figueiredo, neste livro, obriga-nos a enfrentar a nossa cobardia de uma forma ímpar.

Este foi um livro que ofereci mesmo antes de o ler. E não tenho dúvidas que o vou impingir a todos aqueles a quem ofereço livros.

 

08
Mai23

Os Memoráveis, de Lídia Jorge

Patrícia

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Revisitação literária do 25 de Abril ou viagem à mitologia dos factos e não à história dos factos (palavras da escritora), este é um livro muito interessante.

Quando se passam quase 50 anos sobre o 25 de Abril e assistimos a tristes figuras como as que tiveram lugar na Assembleia da República este ano, percebemos que temos que nos esforçar para "cumprir o sonho, cumprir Abril". A literatura é uma forma, talvez a mais excelente forma, de nos fazer pensar.  De, com tempo e espaço, contar a História, a sua mitologia e o seu coração. A literatura aproxima-nos dos factos, faz-nos reflectir, pensar, pôr em causa, questionar, relembrar.

A Ana Maria Machado, uma filha de Abril, repórter em Washington, é-lhe pedido que regresse a Portugal e conte a história da Revolução dos Cravos. Partindo de uma fotografia que reúne os principais protagonistas de Abril (e da sua própria história), Ana Maria e dois colegas lançam-se na busca da estória dentro da História.

Este é um livro extremamente bem escrito (como todos os da escritora) e que nos força a uma leitura lenta. Não podemos pegar nos Memoráveis e esperar um documentário sobre o 25 de Abril, não é para isso que a literatura serve. Lídia Jorge procura o olhar de uma geração que nasceu depois do 25 de Abril, que sem viver Abril, viveu todas as suas consequências. A dicotomia sonho/desilusão está presente em cada página, em cada relato dos protagonistas de Abril, uns mais reconhecíveis que outros (todos são tratados em cada página do livro pela alcunha que lhes foi dada por Rosie Honoré) ou na forma como Ana Maria, Miguel Ângelo ou Margarida vivem esta reportagem.

Um livro importante a que, sem dúvida, ainda voltarei.

06
Mai23

Uma oportunidade perdida?

Patrícia

Aquele ponto de interrogação no título deste post é a minha dose de esperança no futuro. É considerar que, por obra e graça de algum espírito bom, o bom-senso ainda pode prevalecer. Mas é uma esperança pequena, a vida e a realidade têm-me demonstrado vezes sem conta que bom-senso é algo que não abunda.

Quando, há pouco mais de três anos, a pandemia (acabou oficialmente ontem, sabiam?) mandou a maioria dos trabalhadores para casa, eu já fazia teletrabalho com alguma regularidade. A empresa onde trabalhava tinha, há anos, instituído algumas regras que nos permitiam trabalhar em casa de vez em quando. Basicamente podíamos trabalhar em mobilidade 5 dias por mês (não mais que 3 seguidos, não à segunda e sexta) desde que o trabalho fosse compatível e a chefia aprovasse. Para períodos maiores, devidamente justificados, também se conseguia autorização com alguma facilidade. Trabalhar de casa, sozinha, foi uma aprendizagem. Nos primeiros tempos sentia-me de "castigo", não sabia muito bem como gerir a distância para com os outros colegas e não usava muito este direito. Mas a vida acontece, aprendemos e adaptamo-nos e nos anos antes da pandemia já usava esse direito com bastante frequência. Entretanto mudo de empresa 7 dias antes da pandemia ser declarada e dia 13 de Março estou a trabalhar de forma 100% remota. O teams revolucionou a comunicação entre colegas e o teletrabalho revolucionou a minha vida laboral.

O tempo de confinamento foi simultaneamente um dos piores e um dos melhores períodos da minha vida. Estar em teletrabalho ajudou imenso. Na verdade, até profissionalmente, foi estar em teletrabalho que permitiu um enorme crescimento. Hoje olho para trás e pergunto-me como consegui fazer tudo o que fiz naqueles anos sem dar em louca e sei que a resposta está no teletrabalho. Sempre tive horários durante a pandemia mas, confesso que não os cumpri - trabalhei mais tempo com menos custos pessoais que estando no escritório. Rapidamente a minha rotina se estabeleceu e incluía um café e algum tempo de leitura todas as manhãs antes de começar a trabalhar - e isto incluía os dias em que "entrava" às 08h. O privilégio que é trabalhar com roupa confortável e ter tempo para ler de manhã é impagável.

Muitas vezes também lia um bocadinho à hora do almoço e ao fim da tarde. Não precisava pegar no carro se não quisesse, não precisava falar com pessoas se não me apetecesse e se estivesse de muito mau humor conseguia controlar-me em privado - geralmente antes de descarregar em alguém.

Quando voltámos para o escritório descobrimos (a mudança não foi apenas minha mas de todo o departamento) que a nova empresa não permitia o teletrabalho - aliás, não o permite até hoje. Uma vez que não consigo imaginar desvantagens para uma empresa em ter funcionários de forma total ou parcial em teletrabalho, só posso concluir que é o facto de parecer que o teletrabalho traz mais vantagens para o trabalhador que para o empregador que faz pender a balança para o escritório. 

A mera possibilidade de alguém estender/apanhar a roupa em horário laboral (e todos nós sabemos o jeito que isto dá) deve fazer empregadores estremecer. Toda a gente sabe que quem não trabalha em casa também não trabalha no escritório - mas pelo menos está sentado com o rabo na cadeira as horas que lhe pagam (deve ser uma espécie de castigo). A ideia de que a malta pode poupar em combustível, desgaste de carro ou tempo de trânsito não diz muito a quem tem carro da empresa e isenção de horário. O ambiente e a poluição são questões teóricas que fazem parte das preocupações escritas mas não das praticadas pelas empresas. 

Poder trabalhar de qualquer lugar é algo que, para a maioria de nós, faz sentido e abre possibilidades. Poder apoiar os pais, aproveitar a casa da aldeia, mudar-se para um sítio mais calmo, gastar o dinheiro do gasóleo a passear em vez de fazer o absolutamente execrável caminho casa-trabalho são opções que nos agradam e que em nada prejudicariam a empresa onde trabalhamos. Na verdade, mesmo sem ter em conta questões de poupança de água, luz e telecomunicações no local de trabalho, ter trabalhadores mais felizes é ter trabalhadores mais produtivos. Mas claro que isso não é tido em conta e se for pesa no prato da balança do "escritório".

Acho que estamos a perder uma oportunidade e felicito as empresas que têm uma mente mais aberta - aliás, serão estas que conseguirão ter os melhores trabalhadores porque a possibilidade de não pôr um pé no escritório já é um factor decisivo para a miudagem (e para outros não tão miúdos). E invejo aqueles que têm coragem de fazer um ultimado - "ou me deixam trabalhar de casa ou vou embora". Ainda não estou nessa fase porque "coisas" (que implicam não me poder mudar neste momento) mas daqui a um tempo não sei se essa não vai ser a minha decisão. 

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