Inacreditável
Foi coincidência ter lido (mais ou menos) ao mesmo tempo o Educated, de Tara Westover e Lá, onde o vento chora, de Delia Owens. Vou escrever livremente, haverá spoilers, se não leram os livros aconselho a que não continuem a ler este texto.
Em ambos conhecemos meninas com uma educação não convencional (leia-se, sem educação formal e escolar), as razões e as consequências dessa condição. Uma é uma história ficcional, outra uma história verídica, contada na primeira pessoa. Ambas inacreditáveis....da forma como uma expressão pode ter significados opostos.
Em Educated, Tara Westover conta-nos a sua inacreditável história, a forma como os seus pais, mormons extremistas, não a deixaram ir à escola por acreditarem que o ensino público não passa de uma lavagem cerebral, não a vacinaram ou levaram ao médico por não acreditarem na medicina convencional ou a deixaram à mercê de um irmão violento por construirem na sua cabeça uma realidade inexistente. E nunca duvidei de uma palavra durante toda a leitura.
Em Lá, onde o vento chora, Delia Owens conta-nos a história de Kya, uma menina que é abandonada pela mãe aos 6 anos, pelo único irmão que resta logo de seguida e pelo pai aos 7. Ela simplesmente é deixada para trás, numa cabana no pantanal. E sobrevive. Rapidamente aprende tudo o que é necessário para sobreviver, desde lavar a roupa do pai, a conduzir um barco e conhecer as correntes do rio, a amassar pão de milho, lidar com combustível ou com o motor do barco, secar peixe ou apanhar mexilhão para vender. Tudo com 7 anos e sem saber qual é o número depois do 39. E eu, claro, não acreditei numa única palavra.
Talvez se a escritora tivesse optado por nos mostrar como uma menina aprendia a sobreviver de frutas e bagas, como vida e morte se confundem, como nós somos tão animais como os outros animais, eu tivesse embarcado nesta história. Mas em vez disso, Delia Owens conta-nos uma história de alguém que vivendo à margem da sociedade, com poucos contactos com a sociedade, cresce com as mesmíssimas noções de moralidade que qualquer um de nós, sonha com o casamento, critica-se e menoriza-se por ter sexo fora do casamento e a quem nunca, mas nunca, falta combustível para atestar o barco, a quem nunca avaria nada que não possa ser reparado (ainda estou para perceber de onde vinha a água no lava-loiças, se de um furo, um poço, um depósito. Não sei o que era mas era bom, durou uma vida). E deixo já os meus parabéns às infra-estruturas dos USA que permitiam, nos anos 70, que numa zona perdida do pantanal houvesse condições para que um tarefeiro conseguisse, sem grande dificuldade, construir uma casa de banho completa, com electricidade e água corrente num instante. Já eu lembro-me perfeitamente quando, na minha adolescência, a água corrente chegou à minha aldeia. Até lá, furos e depósitos faziam a festa. E todos nós íamos à fonte buscar água para beber. Mas para Kya, assim que o dinheiro deixou de ser uma questão, tudo foi fácil e imediato.
Falemos agora de educação. Kya, aprende a ler aos 14 anos e o mundo abre-lhe todas as portas. O namorado que a ensina a ler, traz livros da biblioteca. Quando ele a abandona (sim, porque todos a abandonam) ela passa a ir buscar livros à cidade vizinha para não ter que ir à biblioteca da cidade mais perto. E rapidamente domina tudo, biologia, poesia e ciência, desde Darwin até Einstein, nada lhe foge.
Já Tara tem um total desconhecimento de tudo. Lê as escrituras e pouco mais, já que o pai não acha que mais seja necessário. Apesar de ter alguns livros escolares em casa e dinheiro para comprar livros (teoricamente está no regime de "home school") os seus conhecimentos são parcos. Quando decide que quer fazer o exame de admissão à universidade (possível para quem frequenta o ensino doméstico) tem que se preparar a sério e até chumba da primeira vez. Numa das primeiras aulas pergunta o significa a palavra "holocausto" que nunca viu e todos se ofendem porque pensam que ela está a gozar.
Kya aceita com naturalidade ser um génio. Tara sofre do síndrome do impostor e é-lhe impossível aceitar um elogio.
A Kya tudo corre bem mesmo quando corre mal. Passo a explicar: tudo o que lhe acontece, cada abandono, cada dificuldade, parece ter como único propósito mostrar o quão forte, inteligente e especial é Kya. Nada deixa verdadeiras marcas.
A Tara tudo corre mal mesmo quando corre bem. Os traumas não a abandonam, o passado condiciona-a e percebe-se que ela avança apesar do medo e da falta de confiança em si.
Lá, onde o vento chora é um misto de "lagoa azul" com "o bom rebelde" e um toque de "Carrie". Inacreditável.
Educated é um testemunho inacreditável e maravilhoso. Um livro que merece ser lido.
(acho que consegui dizer o que queria sem grandes spoilers)