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Ler por aí

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17
Jul22

The Broken Earth Trilogy, de N. K. Jemisin (spoiler alert)

Patrícia

Não precisam acreditar em mim quando vos digo que esta trilogia é muito, muito boa. Basta que saibam que cada um dos três volumes desta série ganhou o prémio Hugo (e outros prémios, incluindo o Nebula). Ou acreditem, porque é. 

Quando comecei a lê-la não sabia de nada disto (sou extraordinariamente distraída e desconhecedora de tudo o que não me é posto à frente por acaso) mas, há uns anos, quando a Relógio d'Água publicou o primeiro volume fiquei interessada e, desta vez, quando chegou a altura de escolher o próximo audiobook lembrei-me dele.

Na verdade vejo esta série como um único livro, partido em três, e não como uma trilogia normal, The fifth season (every era must come to an end) , the Obelisk Gate e The stone Sky foram, para mim, um único grande livro e li-os de seguida - o que, tendo em conta a complexidade deste mundo, foi uma mais-valia.

Esta história passa-se num super continente (Stillness) periodicamente assolado pelo fim do mundo, ou pelo fim daquela Era, ou por aquilo a que os nativos chamam de "fifth seasons", uma série incontrolável de desastres naturais que torna o planeta praticamente inabitável. Com uma estrutura narrativa diferente, no primeiro livro conhecemos 3 vozes diferentes (Damaia, Syenite e Essun) duas narradas na terceira pessoa e uma na segunda. As três são Oregenes, uma das espécies que habitam a Stillness, ou seja, têm o poder de manipular energia, controlar e evitar tremores de terra, vulcões e afins. Num mundo assolado por fifth seasons, dir-se-ia que os Oregenes eram acarinhados, ser-lhes-ia dada importância, seriam considerados imprescindíveis. Mas nos livros de ficção cientifica, à semelhança da realidade, nada se passa como se devia passar e o mais natural é que um pai ou mãe mate as suas próprias crias ao descobrir que têm este poder. 

*** A partir daqui haverá spoiler (mas não muitos) para os três livros, prossigam por v/ conta e risco***

Não é possível falar desde livro sem falar de discriminação, racismo. Da forma como a desumanização do outro permite que os crimes contra eles perpetrados percam importância, sejam menorizados. Vemos isso uma e outra vez. E todas as tentativas para estabelecer a diferença entre nós e eles, como se nós fossemos um nadinha melhores, aquele "mas..." que tenta justificar o injustificável, aquele distanciamento que nos permite aceitar que haja pessoas a passar fome, a viver na rua, a morrer no meio do mar, a serem mal tratadas por uma característica física ou simplesmente por pensarem de outra forma, por amarem exactamente da mesma forma mas a pessoa "errada", esse distanciamento é uma forma de desumanização do outro. Agora podemos dizer que os livros exageram e destacam estes casos para os estudar e nos obrigar a reflectir sobre eles mas não é bem assim, pois não? E tb não podemos dizer que apenas isto acontece apenas por medo porque sabemos e temos todos os dias provas de que isso não é verdade. 

Há aquele momento "há coisas que não são referendáveis" na votação em Castrima que é apenas perfeito. Aliás, os grandes momentos deste livro são apenas momentos, quase descartáveis mas que, caramba, fazem deste um livro especial (e acho que vou descobrir mais alguns quando reler isto tudo - por sim, vai acontecer. Ouvi em inglês mas qdo o último volume estiver disponível em português, releio a série completa).

Este livro também me deixou a pensar no abuso infantil. Podemos abordar esta questão de várias formas. Podemos olhar para Jija e pensar como foi possível que um pai fizesse tal coisa a um filho mas, again, isto acontece muitas vezes não acontece? Um pai ter tanto medo e tanta raiva do que o filho é que o mata ou, caso lhe tanto tanto "amor" que não o consiga matar, o tenta "curar"? Alguém?

Depois temos o Fulcrum, os métodos de educação para lá de reprováveis (mas que podem ser repetidos por "amor"), a escravidão de crianças e adultos  (e nem vou falar dos nodes), a forma como eles são tratados como machos reprodutores e elas como vacas parideiras. E em Nassun temos o expoente máximo do abuso infantil. Não tem uma relação saudável com um adulto. Uma que seja. Ou é maltratada por amor, ou por medo. Tem que viver a rejeição e o nojo que um dos pais sente por ela e a aparente falta de amor do outro. E a relação com o Schaffa é muito estranha - nem que seja porque um adulto nunca pode transmitir a uma criança que ela é responsável pela felicidade e vida dele. Há responsabilidade que não se põem nas mãos de uma criança. Não há ali abuso físico mas há outros géneros de abuso, não há?

Essun não é a típica heroína. Aliás, acredito que seja este livro seja difícil para muita gente porque não é fácil sentir-se empatia imediata por quase nenhuma personagem (Damaia? Tonkee? talvez Ykka). O "bem, não era exactamente isto que eu queria" da Essun não é fácil de entender mesmo quando quase o compreendemos. Essa dicotomia em Essun e (na realidade em todos os personagens, incluindo Schaffa) é uma das coisas que faz deste livro interessante. Não é um livro fácil mas vale a pena.

Temos que falar de amor, não é?

Em primeiro lugar temos que falar da ausência do típico romance dos livros (aleluia) e de como, quase sem lhe dar importância, a escritora põe aqui relações de todos os tipos, sejam entre pessoas do mesmo sexo ou poliamorosas (é assim que diz?) por exemplo, e deu-lhes uma forma tão natural (considerando que ouvi em inglês e que pelos nomes nem sempre sabia se era uma mulher ou um homem, podem imaginar) que me deu vontade de bater palmas). E podemos falar de amor filial. Again, Nassum como exemplo de tudo o que não se deve fazer. E aqui tenho que referir aquilo que não me convenceu totalmente: a escolha que Nassum faz por amor. Demasiado rápida para o meu gosto. 

Curiosamente um dos momentos deste livro é quando Hoa diz o óbvio: "podemos amar mas não podemos escolher como essa pessoa nos ama de volta" (ou qualquer coisa assim), deixando claro que aceita não ser amado como gostaria e depois de tudo o que fez. Learn with Hoa.

Vou acabar com o momento "hello, little enemies" (o que foi aquilo, senhores? que maravilha) e a transposição para o que estamos a fazer ao planeta terra. Algures no tempo lê-se algo do género (perdoem-me que ouvi o audiobook no carro e é impossível citar correctamente sem ter o livro ou um papel e caneta na altura): "deviam ter desconfiado que algo cheio de vida está vivo e consciente" e eu não pude deixar de pensar quão verdade isso é. 

 

 

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