Maria Marta, Maria Marta
cuidado, que é farta
a astúcia do mal
não abras a porta à doce cantiga
não espreites sequer
nem medo ou fadiga
te deixem ceder
Que a porta oculta o que ainda não vês
é engano do bruto
e assim tão astuto
é o diabo talvez
Não abras a porta, Maria Marta
que o mal quando entra não sai nunca mais
e de ti não se farta, Maria Marta
e morde e sussurra e lambe e engana
e finge que fala com voz quase humana
e não mais se cala na tua cabeça
bem podes pedir-lhe que um dia emudeça
que o mal e o diabo prometem que sim
mas riem assim que dançam de volta
da Maria Marta
Da Maria Marta
que fica tão farta
da vida tão torta
que entrou pela porta
que a Maria Marta
é Maria morta.
Depois de "Jogos da Raiva" e do "Pianista de Hotel" o escritor Rodrigo Guedes de Carvalho entrou definitivamente para a minha lista de escritores "quero ler tudo o que escreveram". Margarida Espantada apenas veio confirmar que não sai dessa lista tão cedo.
Com (literalmente) a inconfundível voz de RDG ler este livro foi uma experiência diferente. Optei por comprar o audiobook por gostar muito de ouvir histórias e também por querer recompensar a audácia de arriscar num formato tão incompreendido como o audiobook. RGD arriscou e venceu (espero que também em termos de vendas). Admito que de início foi difícil separar o pivô do narrador, foi difícil não ouvir este livro como quem ouve um qualquer período informativo na televisão mas depois de o ter feito consegui ouvir a história, as personagens, a voz de cada uma delas e sempre, sempre, ouvi-las conduzida pela voz do escritor, perito em transmitir-nos exactamente aquilo que pretende. Ouvir um audiobook é, por vezes, fazer um bocadinho de batota. É bem mais fácil perceber o que o escritor nos está a dizer. Especialmente quando é ele que nos narra a história. Batota e um enorme privilégio.o único
Tenho a certeza que nesta altura já sabem que Margarida Espantada é um livro que nos conta a história de uma família, que aborda inúmeros temas importantes e interessantes, por isso nem vou por aí. E acreditem em mim: a leitura será tão mais interessante quanto menos souberem sobre o que fala este livro.
Nem sei porque esperava, no princípio, uma história leve e breve mas terá sido por não ter pensado em que escreveu o livro. RGC não escreve apenas por escrever, não escreve nem de forma leve, nem de forma simples. Não me interpretem mal, não é nada difícil ler este livro. Lê-se de um fôlego e tem uma linguagem bastante acessível. Mas não nos conta a história de uma forma linear, obriga-nos a pensar, a imaginar, a achar que percebemos tudo para perceber que não é bem assim, que a vida não é a preto e branco, tem todas as cores possíveis, na ficção como na realidade.
O único defeito que aponto a este livro é um certo paternalismo (em algumas frases do livro que me fizeram revirar os olhos) ou se é a transposição da minha percepção do jornalista para o escritor. Mas não foi isso que prejudicou a leitura deste livro.
Não posso deixar de referir as piscadelas de olho aos seus leitores com a presença de personagens como a Ana Teresa ou a cena no Hotel Mirage. Acho muita piada a estes cruzamentos (lembro-me perfeitamente quando, numa releitura e pela primeira vez enquanto leitora, percebi uma ligação que me deixou encantada).
Arrisquem, oiçam o Margarida Espantada (ou leiam o livro, é como quiserem).