“Sempre receara que isto acontecesse, mais do que alguma vez receara a morte. Morrer é perder o eu e reencontrar o resto. Ele conservara-se a si mesmo e perdera o resto”
Acabei o ano de 2016 com um livro cuja primeira edição data de 1974. E que excelente final foi.
A ficção cientifica não é um dos géneros que mais leio e é um dos mais subvalorizados do panorama literário… e que injustiça isso é.
Ler Os despojados- uma utopia ambígua de Ursula K. Le Guin é muito mais ler um ensaio político, filosófico, feminista do que ler uma história com naves espaciais. Nesta primeira parte do livro a parte das “naves espaciais” (ou seja, das teorias que suportam a parte da ficção cientifica – com especial destaque para a teoria da simultaneidade, que Shevek desenvolveu – ainda mal deu um ar de sua graça) é claramente preterida em relação à parte política e social.
Não é possível ler este livro e começar sequer a compreendê-lo sem o contextualizar historicamente. Em 1974 duas guerras estavam na ordem do dia: a fria e a do Vietnam que ceifavam vidas e confrontavam ideologias políticas e sociais. Nem sequer é preciso ter grandes conhecimentos de história para perceber que em Urras estão presentes os Estados Unidos e a União Soviética. A introdução de um terceiro movimento, representado por Anarres, ajuda a complementar a reflexão a que a escritora se (e nos) propõe.
Nesta primeira parte (a edição que estou a ler é da Europa-América e está divida em 2 partes) é-nos contado que um grupo de pessoas vai viver para a lua de Urras contruindo ali uma sociedade anarquista/socialista com base nas ideias de Odo, uma mulher que, curiosamente, não sobreviveu tempo suficiente para ver a concretização dos seus sonhos. Algumas gerações depois, Shevek, um físico, vem para Urras tentar estabelecer uma ponte entre duas sociedades que se tinham separado de forma radical – a única comunicação entre estes dois planetas era feita atrás de muros.
Estes muros surgem literal e metaforicamente logo nas primeiras páginas deste livro. Literalmente quando separam os habitantes de Anarres das naves espaciais que chegam do planeta-mãe Urras e que nos levam a questionar se os muros são um símbolo de liberdade (uma vez que os habitantes de Anarres se exilaram por escolha própria) ou uma prisão mascarada. Metaforicamente quando começamos a perceber a filosofia base da sociedade de Anarres. Na página 20 podemos ler, a respeito das “ideias” que “Havia paredes à volta de todos os seus pensamentos e parecia não ter nenhuma consciência delas, embora se escondesse perpetuamente por detrás”.
Ao longo destas páginas todos os sistemas são questionados. Todos os conceitos são dissecados, transformados e refeitos. Muitos chocam com tudo o que conhecemos, que aprendemos, que nos é inerente. O conceito de família, por exemplo. Absolutamente deturpado (em relação ao que conhecemos) leva-nos a questionar a obrigatoriedade dos laços de sangue, do casamento, da sexualidade, dos sentimentos (e falar de sentimentos em Anarres é até uma coisa que parece estranha).
Apesar de ter ganhado bastantes prémios (Nebula, Hugo ou Locus) este é um livro claramente subvalorizado. Assim como Ursula K. Le Guin é, infelizmente, uma escritora esquecida em Portugal.