Uma Senhora Nunca, de Patrícia Müller
Fiquei agarrada a este livro nas primeiras páginas. Logo aí decidi que o "Madre Paula" seria uma das minhas próximas leituras e que Patrícia Müller é uma escritora a seguir.
Maria Laura é uma mulher fascinante. Muitas vezes irritante e quase sempre incompreensível. É preciso recuar no tempo e ir novamente a 1974, ao dia da revolução e começar a compreender. Não, minto, é preciso ir mais atrás. E mais ainda. É preciso olhar em volta e perceber o espaço e o tempo envolvente para começar a perceber esta mulher, esta vida fascinante.
A crítica social está presente, claro. Como disse não seria possível perceber esta mulher, a sua família, as suas atitudes, sem perceber o país, o regime, a sociedade, a igreja de então. A hipocrisia. A moral. E esta parte do livro é impressionante.
Mas o que me fascinou neste livro foram duas mulheres. Maria Laura e Glória. As suas atitudes, as relações com os que as rodeavam. As várias camadas que tinham. Não há heroínas nesta história, tal como não as há na vida real. Há pessoas que cometem erros, que acertam, que fazem asneiras com a melhor das intenções ou que acertam por acaso, porque o objectivo era outro. E são essas pessoas que moram nestas páginas. São essas mulheres que têm voz pela mão da Patrícia Müller. E como ambas são fascinantes.
Espero que o protagonismo da escritora com a adaptação televisiva do seu Madre Paula permita que mais gente conheça este "Uma Senhora Nunca" que, injustamente, tem passado despercebido.
Deixo-vos um excerto de "um texto inédito que complementa Uma Senhora Nunca", que a escritora partilhou na rubrica Ao Domingo com... do blog da Cris (O tempo entre os meus livros). Sigam o link no texto para lerem, não só o texto completo como o que Patrícia Müller escreveu para o blog da Cris.
O que uma senhora ainda não pode é ter falta de amor paternal.
Mas Maria Laura não se senta na obrigação de cumprir com outras regras que não as que ela conhece desde pequena, desde que se reinventou e chamou a si o epíteto senhorial, à custa de puxar as veias certas do coração e desligar as que pertencem a classes mais simplórias e populares. A senhora não é pontual, a senhora faz as horas do dia. Não é económica, é rica. Não é sincera e leal, usa de todos os recursos que possui para conseguir o que quer, incluindo mentir, exagerar e até verter lágrimas de crocodilo. A senhora é um crocodilo mal humorado. Tem confiança de que a educação – fornecida através da perceptora que a acompanha em casa; do pai que tudo sabe sobre o mundo e da avó, detestável avó que a ensinou a comer como se pudesse ir amanhã jantar com um membro da realeza europeia – é a chave para uma boa vida. Uma senhora ainda não pode prescindir de regras, sob pena de se engolir no seu próprio vómito. É um balanço complicado, uma linha de água muito escorregadia: um desequilíbrio e afunda. Maria Laura não afunda, porque a mão de Deus está sempre debaixo dela. E uma senhora ainda não pode permitir-se ficar sozinha neste mundo, sem a companhia do pai e de Deus. Por isso, Maria Laura, a senhora de todas as senhoras, reza todas as noites pelas semelhantes a ela e pede, com fervor, que nunca esmoreçam na tarefa de construir o mundo. Sem as senhoras, era tudo uma cambada de ordinaríssimos. E valha-nos Deus que isso venha alguma vez a acontecer.
Sobre este livro a Cris também escreveu uma opinião. E a Vera. E a Cris Rodrigues.